sábado, 31 de julho de 2010

Flicts





Era uma vez um Lion e uma Margarida e um fantástico entardecer. Após longos dias de invariáveis contratempos, encarnados em pesadelos e borras coloridas, ambos precisavam de um lânguido banho de sol. Lion bocejara seu desejo por um piquenique e Margarida imediatamente comprara a idéia. E os ingredientes para os quitutes primaveris que preparara.
Um pouco de antes de partirem Lion estava todo alvoroçado e disse que precisava sair por alguns minutos e já voltaria. Como normalmente era preguiçoso deixou Margarida curiosa com seu comportamento, mas ela tinha tantas miudezas para organizar que logo esqueceu.
Pouco tempo depois Lion voltou, todo ensopado. Começara a chover. Margarida ficou desapontada, imaginou que acabara qualquer chance de fazer o piqueninque, mas Lion prontamente avisou:
- Que nada, essa chuva vai passar. Prometo.
Ele fora tão assertivo que mesmo em meio a embaçadas dúvidas, ela aquiesceu e prosseguiu.
Quando saiam, ainda na varanda, Margarida olhava a chuva que caía espessa e não disfarçava seu desapontamento.  Lion abraçou-a e repousou a pata pesada na curva do quadril dela. Neste momento ela começou a se sentir morna e percebeu que pouco a pouco a chuva cedia e o sol penetrava o véu das nuvens. Ela sorriu. Lion pressionou a pata conduzindo-a, e assim tomaram o caminho da roça.
E nesse caminho, emoldurando o céu que se abria, figurava o mais belo e largo arco-íris de nove cores que já existiu.
Margarida, embevecida, perguntou:
- Foi você, Lion?
Com um sorriso jocoso ele respondeu que não. Mas ela sabia que sim.

domingo, 18 de julho de 2010

Epistaxe


Lion estivera em reclusão por vários dias. Fora acometido por uma doença que atingia apenas descendentes de felinos. Estava sobre o skate distraído, olhando para a porta da casa de Margarida, enquanto dali se distanciava. Ela não estava, frustrando os planos de agradecimentos que ele tinha elaborado e tornando obsoletas as flores que trouxera. Por isso, mesmo enquanto se afastava, Lion ainda tinha a mente voltada para lá. Foi aí, no viés da distração, que Lion bateu numa pedra e caiu. Estatelado no chão, com o rosto alisando o asfalto, percebeu que escorria um líquido azul de sua boca. Imediatamente ele pensou: "borra de ciúme".

Os descendentes de felinos, conhecidos como felia, possuíam uma degeneração genética manifesta em estados extremos. Quando sob forte sentimento, em caso de choque ou trauma, os felia expeliam uma substância chamada de borra, na cor do sentimento em questão. A cor do ciúme era azul.

Entretanto, Lion não compreendia. Durante toda a sua reclusão pensara sobre Margarida, sobre sua frustração, e mesmo em meio a devaneios românticos que incluíssem ele e a amiga, ele sabia que entre todas as ternuras, os sobressaltos, os afetos, não se apontava ciúme. Então, resolvera colocar aquele evento junto a todos os outros que tão diligentemente guardava, na esperança de que algum dia, em meio aos desencaixes e simulacros pudesse descobrir algo que o levasse ao passado de quem era.

Ainda absorto na sua incompreensão Lion percebeu que Margarida entrava pela porta, trazendo nas mãos o buquê dele, devidamente seco. Ambos sorriram enquanto se olhavam. Até que o sorriso de Margarida esmoreceu, e ela lentamente se aproximou, com ares preocupados.
- Seu nariz sangra.

Ela catou a bainha da camisa e limpou-o. O nariz de Lion sangrava rosa.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Registro Fóssil


Estava aberta a temporada de ventos, ventanias, vendavais. O céu permanecia verde a qualquer hora do dia ou da noite. Uma chuva de meteoritos precipitava-se sobre a terra e, quando em contato com a atmosfera, não apenas partia-se, mas esfarelava-se como pó refinado e tingia a alvorada em brilhos como diatomáceas siderais.   Sobre o skate, percorrendo o espaço como se tempo fosse, Lion construia uma trajetória que, sob as rodas de Jacob, ia sendo demarcada em bioluminescência.

sábado, 10 de julho de 2010

Jardim



Margarida ajeitou-se na poltrona. 3h40 da manhã, dizia o relógio. Lion ainda dormia sem sobressaltos, mas se aproximava a hora do seu terror noturno cotidiano. Já havia uma semana que ela observava o sono dele, fazendo um inventário das reações, da balbúcie, alguma memória fresca se despertasse abruptamente. Fazia anotações no mesmo caderno que Lion já usava. Leu registros antigos e aos poucos foi tornando-se a memória daquele romance de amnésia.
Às 4h em ponto Lion rugiu. O sangue de Margarida se aqueceu e mudou de direção. Ele agia, e no corpo dela o que é líquido reagia. Lion bocejava e Margarida era um lago arejado.
Os olhos dele abriram ainda embotados de sonhos. Um segundo. Dois segundos.
- Helicanto?
- Margarida, Lion, Margarida. Volta a dormir, estou aqui.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Grifo


A noite estava enluarada. Porém, ao ivés de rosas, as duas luas brilhavam amarelas, mergulhadas num céu azul de meia-noite. "Não abra os olhos", ele pediu. "Lembro que você sempre foi mais suave com os olhos fechados, e eu vou precisar dessa suavidade". Ela suspirou incomodada mas manteve os olhos fechados enquanto ele vagarosamente pousou algo em suas mãos. "Promete tomar costa disto pra mim? Só posso confiar em você". Ela acariciou o objeto arredondado e constatou que era um ovo. Algo aconteceu em seu coração e ela soube este ovo suscitaria metáforas. Só não imaginava quantas.


terça-feira, 6 de julho de 2010

Inflorescência

Chegando à esquina, logo viu Margarida. Lá estava, como sempre, braços abertos, olhos semi-cerrados, enquanto entoava cantigas que adormecessem as plantas e os bichinhos. "Aqui é meu canteiro", ela dizia, "desempenho meus talentos para garantir uma raiz por aqui".
Ela estava de costas, e pela enésima vez Lion ia tentar abordá-la de surpresa, e pregar um susto. Desceu do skate em distância hábil, e foi exercitando passinhos de formiga, desviando dos gravetos que outrora tão estaladamente o entregaram.
Já estava bem próximo, à distância de apenas um braço, quando, sem ao menos se voltar, Margarida disse: "já te disse que prender a respiração não te ajuda, te atrapalha. Esse falso silêncio ecoa como arautos em meus ouvidos".
Lion suspirou e desistiu. Sentou-se no gramado enquanto olhava a nuca de Margarida, que nunca virou-se, e ficou matutando novas alternativas de abordagem. Um dia ela ia levar um susto daqueles. Depois, prestou atenção às duas luas rosadas, que apesar do dia claro ainda ocupavam seus lugares no céu.
"Empresta o Jacob pra eu dar um rolé?"
"Toma".
Margarida pegou o skate e saiu andando, deixando Lion dividido entre planos infalíveis, luas rosadas, e a curiosidade de por que seria que Margarida demorava toda uma volta no Jacob para só então olhá-lo nos olhos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Letes




Mal acabara de abrir os olhos e de um salto Lion já estava em pé ao lado da cama. Correu ao criado mudo atrás de papel e caneta, e antes que pudesse se esquecer rascunhou a seguinte frase: quando é que um leão nasce de um ovo? Tentou lembrar de mais alguma coisa, mas o sonho já esvaecia, e a única coisa que ainda restara nele era uma sensação de familiaridade. Mas ainda era pouca informação; resolveu guardar para um momento mais oportuno.
Foi viver o dia, então. No banheiro, enquanto escovava os dentes percebia como sua juba estava cada vez mais bonita. Não que ele soubesse muito bem o porquê, considerando sua vida desregrada e seus hábitos pouco saudáveis. Mesmo assim, a juba reluzia, e passeava do dourado a um leve cobre, displicentemente charmoso.
Tudo isto lhe sugeria que ele precisava de sol. Afeito a indulgências, foi muito serelepe buscar Jacob. Pois quando era ele e o skate sob o sol, podia não lembrar. Pra alguém que perdera a memória e vivia o exercício constrito da lembrança, poder não lembrar era dádiva.
Lion partiu, e era Jacob na terra e Apolo nos céus.